CORRUPÇÃO E TREZENTAS ONÇAS – FESTEJANDO OS 100 ANOS DOS CONTOS GAUCHESCOS DE SIMÕES LOPES NETO

TREZENTAS ONÇAS
VIDEO: http://www.youtube.com/watch?v=7pRNWWlbvu4
A releitura dos Contos Gauchescos, de Simões Lopes Neto, faz sempre com que eu retorne ao ambiente telúrico onde tive minha infância e adolescência. Nasci em Porto Alegre mas, com a tenra idade de um ano e meio, meus pais resolveram ir morar lá no Alegrete, terra de minha mãe. Assim é que cresci imerso neste mundo pictórico vibrante de sentimentos e expressões da cultura gaúcha. Meu avô Jangota Pereira, velho tropeiro, tinha várias fazendas e numa delas, a estância da Boa Vista, situada entre a serra e o rio do Caverá foi ali que passei uma das fases mais bonitas de minha vida. São estes os laços evocatórios que, ao ler os textos de Simões Lopes, um burburinho incontrolável de sentimentos, sons, palavras e memórias ecoam em minha alma saudosa. Todos nós gaúchos temos alguma senda na memória que nos remete a este sentimento de identidade de sentir que emana e ao mesmo tempo irmana o escritor e seu leitor na atmosfera dos Contos Gauchescos. Trezentas Onças é o conto pelo qual Simões Lopes inicia a saga de Blau Nunes, tropeiro e vaqueano que ricocheteia seu andejar pelos pagos gaúchos. Simões dedica os contos à memória de seu pai pontuando a densa e profusa extensão de sentimentos com uma palavra: Saudade! Por esta porta, a paterna, é que foi iniciado no sentimento e vivência atávicos. Quando falo em atávico o faço com a conotação mais profunda possível. Aquela dada por Carl G. Jung em sua grande obra “O Homem e seus Símbolos”. É Joseph L. Henderson, comentando a obra de Jung, em seu artigo “Os mitos antigos e o homem moderno” que afirma que “foi a Escola da Psicologia Analítica do Dr. Jung que, nos nossos dias, mais contribuiu para a compreensão e reavaliação destes símbolos eternos. Ajudou a eliminar a distinção arbitrária entre o homem primitivo, para quem os símbolos são parte natural do cotidiano, e o homem moderno que, aparentemente, não lhes encontra nenhum sentido ou aplicação.” Continuando ele afirma: “ Como o Dr. Jung assinalou…a mente humana tem sua história própria e a psique retém muitos traços dos estágios anteriores da sua evolução. Mas ainda, os conteúdos do inconsciente exercem sobre a psique uma influência formativa.” Simões Lopes Neto, em Trezentas Onças, dentro do acondicionamento que traduz a paisagem e um sentir telúricos dos pagos, através do retratar dos costumes, do linguajar, traz no cerne do conto, engastada na tessitura viva da alma gaúcha uma pérola ética. Um valor moral essencial e que traduz o sentir-se ou o ser gaúcho: a honestidade! Blau, abombado da longa viagem, acompanhado do cusco e do pingo zaino encontra um manancial. Aquerencia-se. Tira uma sesta na beira do arroio. Acorda e resolve se refrescar num banho. Veste a roupa e monta o cavalo esquecendo a guaiaca, recheada com trezentas onças, em cima de uma pedra, ataviada pela cinta das armas. Lembrar-se-á do esquecimento na frente da fazenda aonde veio adquirir gado para seu patrão dono de charqueada. Rememora o lugar onde esqueceu e também de seu cachorrinho que até o último momento volvia e latia como para lhe advertir da ocorrência. Volta a galope passando por uma larga comitiva. Chega ao lugar e nada encontra. Apavorado pensa dar cabo à vida. Numa visão poética incrível que passa pelo reflexo das três-marias nas águas do manancial que lhe evocam os filhos e a família. O cusco que lhe lambe a mão. O zaino que, com seu relincho, rompe-lhe a catarse depressiva que o leva aos limites do suicídio. Recupera-se e já, dono de si, relevando o valor dos bens materiais, assume numa contabilidade hipotética o valor da vida e dons bens do espírito, que numa partida dobrada zeram seu patrimônio, aurido com tanto custo e trabalho, mas que, no entanto, lhe devolvem o sentimento de honra. A galope, apeia na frente da fazenda, encontrando a mesma comitiva e lá, “em cima da mesa, a chaleira, e ao lado dela, enroscada, como uma jararaca ressolana, a guaiaca, barriguda, por certo com as trezentas onças, dentro.” O contraste engenhoso de situações de paz com explosões infernais de espírito que vão paradoxalmente da meditação espiritual em consonância com a paisagem até a mortificação da alma que pensa dar cabo de si e renasce através das evocações da própria natureza e dos seres como o zaino e o cusquinho “a lo largo”, gabam a maestria e esmero do contista. Mas o que fica a retinir na mente é esta pérola engastada no conto e que traduz ali e no cenário, a honestidade do gaúcho. A comitiva que encontrou a guaiaca recheada de ouro devolveu o que não era seu. É este arquétipo ancestral e moral que como viga mestre, como um símbolo junguiano atávico, atravessa os milênios e vem habitar a gente do pago também. Assim como Blau lacrimeja copiosamente o leitor também frente às explosões de sentimento que ricocheteiam no conto e por osmose criam uma comunhão entre contista e leitor. Minhas lágrimas foram às mesmas que furtivamente deixei cair sobre o “Livro dos Mortos” retirado do antigo papiro de Nu com seus mais de 5000 anos de história. Lourdes Bacha, em sua obra Escritos do Antigo Egito, retrata a terceira região, por onde peregrina a alma dos mortos, cognominada “A Câmara de Maat”. É ela que descreve que “em frente ao santuário, Horus (por vezes Anubis), apresenta a alma do morto ao julgamento de Osiris. Um pouco mais para a esquerda coloca-se Thot, na função de “Escriba dos Deuses”, com a palheta em punho, pronto a anotar as palavras a serem pronunciadas pela alma. A seguir está ilustrado o ponto focal de toda a cena: dominando o espaço está uma grande balança, que é Maat, a Verdade\Justiça, o Equilíbrio, a Ordem, a Harmonia. A Balança de Maat era um dos signos do Zodíaco egípcio, associada à Maat/Isis/Vênus, que depois, ao ser transplantado para o Ocidente pelos gregos, passou a determinar o signo de Libra.” Nesta câmara o morto recitava um dos textos mais conhecidos da liturgia egípcia que era a chamada “Confissão Negativa a Maat” com suas 42 exortações aos 42 deuses. Lourdes Bacha através da nota de rodapé afirma que Moisés, cujo nome egípcio era Asar foi iniciado nos mistérios em Heliópolis e que ao levar os conhecimentos adquiridos ao povo judeu, sintetizou a confissão negativa egípcia nos dez mandamentos. Cito a esmo e fora de ordem alguns, como:
Não fiz mal a Humanidade;
Não apresentei meu nome para honrarias;
Não maltratei criados;
Não causei dor;
Não fiz nenhum homem passar fome;
Não fiz ninguém chorar;
Não pratiquei homicídio;
Não acrescentei, nem roubei, com fraude…
Não mexi nos pesos da balança para enganar o vendedor;
Não tirei o leite da boca das crianças;
Não levei o gado que estava em seus pastos;
Sou puro de voz! Sou puro de voz”
Este é o texto atávico, que como um arquétipo, aquele estudado por Yung, como um efeito João de Barro – o pássaro não fala, no entanto, transmite por gerações a sua habilidade de fazer um ninho tão engenhoso – assim como o ser humano, na intimidade de sua subjetividade, tem estes conteúdos ancestrais que se transmitem pelos milênios e fazem a liga áurea moral que solda a sociedade humana. Simões Lopes Neto e seu personagem Blau Nunes, são puros de voz também e deixam seu testemunho resgatando este cerne moral. Reinhart Koselleck em sua obra “Crítica e crise” afirma que Turgot ao invocar a consciência humana e postular a subordinação da política à moral…afirmando…que a legitimidade moral é, por assim dizer, o esqueleto político invisível sobre o qual a sociedade se ergueu…” Assim é que estes elos que estavam já acompanhando a gênese da psique da humanidade, retratados pelo papiro de Nu há mais de 5000 anos atrás, como arquétipos culturais estão presentes na literatura de Simões Lopes Neto e comparecem, ataviados e pilchados na paisagem e com os laivos do jargão pampeano, o fulcro vivo do que foi, do que é e do que será sempre ser honesto na história da humanidade. Simões Lopes e Blau dão este seu testemunho sob o cintilar das três-marias espelhadas na superfície do manancial que é o reflexo da própria alma do gaúcho. Nestes tempos pós-modernos do século XXI turvados e turbados pelas ignomínias dos escândalos públicos como este do mensalão está a mensagem de Blau e de Simões a retificar e reconduzir o reto e justo caminho. Em sessão da Academia Rio-Grandense de Letras reproduzi perante os Acadêmicos, presente na sessão o ilustre historiador Moacyr Flores, que em programa de debates em uma grande rádio de Porto Alegre, confrontado por um político ele teria dito que o micro cosmos da política, refletia o macro-cosmos da Sociedade Civil em termos éticos. Justificava assim o processo e a recidiva da eclosão de mazelas na área pública. Moacyr Flores, com uma presença de espírito incrível, contestou esta imagem retificando-a, em termos científicos, nos seguintes termos: A imagem do espelho é, como processo de física, uma imagem sempre invertida. Assim é que a metáfora utilizada pelo político é um engodo pois o Povo e a Sociedade Civil são e permanecem honestos e desonestos são estes, que numa imagem invertida do bem, reproduzem só o mal através da eclosão persistente dos escândalos na esfera pública. Deveriam estes políticos, além de serem condenados pelos tribunais, pelo Supremo e, pelo Ministro Joaquim Barbosa, terem, além da pena, não a condenação, mas o benefício de lerem Trezentas Onças. Em pesquisa feita no Mister Google, a fim de atestar a hombridade disseminada da Sociedade Civil e do Povo e comprovar que ali continua engastada esta milenar pérola moral atávica, arquétipo social humano, retratada nos verdadeiros altares semióticos desenhados por Simões Lopes Neto: No ato individual da guarda: O manancial, a pedra e sobre ela a guaiaca recheada de onças e guardando-a, o cinto das armas. Incólume. No ato social da manutenção: A mesa, a chaleira, e ao lado, ainda incólume, justa e perfeita, a guaiaca recheada, não com 100, nem com 200, mas com três centenas de onças. A mesa é onde se reparte o pão e que dá origem léxica a palavra companheiro que vem de “cum pagni” ou aquele com que se reparte o pão. Companheiro e Irmão. É o arquétipo da norma justa introjetada na psique humana e regendo os atos dos mortais e dos imortais como relata o fragmento de Píndaro que afirma que a norma reina sobre todas as coisas.” É este o saber que se projeta de forma ancestral nos ensinamentos de Ulpiano, no Digesto, nas fórmulas imorredouras do “Honeste vivere”(Viver honestamente); “Alterum non laedere” (Não lesar os outros); “Suum cuique tribuere” (Dar a cada um o que é seu). É este o saber milenar retratado por Simões Lopes em seu povo, o gaúcho, mas que é um acervo e um valor disseminado entre todo o povo brasileiro. Pois o conto trezentas onças continua a se reproduzir na saga da vida contada, ainda nos fogos de chão, mas já também na grande mídia como retratam os fatos reais contados por estas manchetes que colhi em pesquisa na Internet:
1 – FAXINEIRO DEVOLVE MALETA DE DÓLARES NO AEROPORTO DE BRASÍLIA – http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2012/06/06/interna_cidadesdf,305909/empregado-do-aeroporto-que-devolveu-maleta-com-dolares-tem-salario-reduzido.shtml
2 – FUNCIONÁRIA DEVOLVE DINHEIRO EM SOROCABA – http://globotv.globo.com/tv-tem-interior-sp/tem-noticias-1a-edicao-sorocabajundiai/v/mulher-devolve-maleta-encontrada-com-mais-de-r-20-mil-em-sorocaba-sp/1983574/
3 – MOTORISTA DE TÁXI DE SANTIAGO DO BOQUEIRÃO RS – DEVOLVE MALETA COM DINHEIRO DE MÉDICO
http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2012/08/medico-esquece-r-20-mil-em-taxi-no-rs-e-motorista-devolve-dinheiro.html
4 – SERVENTE DE AEROPORTO ENCONTRO 24.000 E DEVOLVE AO DONO:
http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2012/02/servente-de-aeroporto-encontra-r-24-mil-e-devolve-ao-dono-no-rs.html
5 – GUARDA MUNICIPAL DEVOLVE IMPORTÂNCIA AO DONO
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/06/29/guarda-municipal-devolve-bolsa-com-r-20-mil-a-dono-esquecido-em-sorocaba-sp.htm
6 – DOIS MORADORES DE RUA DEVOLVEM DINHEIRO http://www.youtube.com/watch?v=cB3CCzyG5f4